Você provavelmente era (ou é) a última pessoa a ir embora da igreja. Sabe bem como é lançar olhares de súplica pra sua mãe (provavelmente também ocupada com algum irmãozinho sem pressa alguma de ir embora) e receber de volta aquela mímica labial que diz “fala com o seu pai”. Com o estômago vazio e a paciência acabando, você senta no banco, espera o fim da reunião do conselho e imagina o frango assado que os outros já estão comendo há horas nas suas casas.
Na escola a coisa é um pouquinho mais difícil: o quê que o seu pai faz? Papai sempre foi de falar bonito, então me mandava dizer que era Teólogo. Mas crianças de 10 anos não sabem o que é Teólogo e você responde à pergunta com um tímido “Pastor”. “Tipo padre?”, falava um. Aí outro dizia: “Se fosse padre como ela ia nascer, idiota?” E a confusão se instalava.
E quando perguntam o que um pastor faz? Crianças que não frequentam a igreja tendem a não entender quase nada desse universo – mais ou menos um leigo tentando entender mecânica quântica. Meu pai prega. “Pregar? Mas tipo prego na madeira?”
Na adolescência melhora um pouco em relação à explicação, mas piora quanto ao julgamento. Pastores, para muitos, são aqueles que roubam dinheiro das pessoas através do dízimo. Logo, você, filha ou filho, é a princesa/príncipe que tira férias graças às ofertas do gazofilácio (outra coisa que seus amigos não-cristãos jamais saberão o que é). Até você explicar que seu pai é mais duro que pão de anteontem e que ele não pode pegar pra si o dízimo que a igreja recebe, Jesus já voltou…
Você é provavelmente o campeão internacional de furto de pãozinho depois da Santa Ceia, deixava as tias malucas na Escola Bíblica de Férias (e quando cresceu pagou seus pecados ajudando a organizá-la); cansou de brincar de pular entre “Jerusalém e Jericó”, passou a vida indo em acampamentos, sabe até em hebraico a música “A alegria está no coração de quem já conhece a Jesus” e já perdeu as contas de quantas vezes foi citado nas piadas de pregação do seu pai. Também já foi o Zezinho e a Mariazinha dos fantoches das crianças, dançou “Havia um homenzinho torto” por anos a fio e se juntar a quantidade de chá mate e cafézinho que tomou ao longo da vida depois dos cultos daria pra encher um estádio…
Agora uma verdade dura a ser dita: filho de pastor também sente sono na pregação do pai. A diferença é que nós somos os únicos que não podem dormir. (Ok, há uma outra diferença: nós sabemos que enquanto a maioria do mundo tira o cochilo sagrado do domingo a tarde, seu pai está acordado preparando a mensagem. Isso também freia nossas pálpebras).
Ser filho de pastor é basicamente como ser filho de político: sempre vão ter aqueles que não vão gostar do seu pai, e é preciso lidar com isso – assim como muitos terão um carinho enorme por ele, e 20 anos depois ainda vão ligar na sua casa pedindo notícias ou compartilhando alguma alegria. Nesses momentos você percebe que aquele tempo em que seu pai deixou de estar com vocês para atender ou aconselhar alguém… hoje faz sentido.
Ser filho de pastor também é muitas vezes conviver com o mito de que sua família é tipo Doriana. Então vou contar um segredo: não, não é. Mas “desabafar” é um verbo complicado para o pastor e sua família, já que qualquer comentário sobre os problemas de vocês pode ganhar proporções ou interpretações indesejáveis diante dos outros e da igreja (é como com um político, lembra?). Então nem sempre, minha gente, dá pra abrir o coração. E isso faz falta.
E aí você se põe a pensar: é duro ser filho de pastor, hein? É. Assim como é duro ser filho de engenheiro, bombeiro, professor, camelô, ator, cantor, porteiro… assim como é duro ser filho de muita gente. O que eu quero dizer é que, apesar de tudo isso, com o tempo e o coração aberto você passa a perceber que é tão alienígena como boa parte das pessoas com quem convive. Há sim, coisas que só nós vivemos, boas e outras nem tanto. Mas basta uma conversa mais a fundo com alguém e pronto: você vê o quanto o ser humano (e todo o seu pacote de carências, lutas, medos, traumas e inseguranças) é muito, muito semelhante.
Então não tenham medo de nós, terráqueos. Somos todos filhos de um só pastor.